O dia em que
fui obrigado a descer do trem
ou
Viajando de
Roma a Verona sem uma Lira no bolso.
(A. de
Andrade)
Naquele manhã eu tinha deixado Roma para celebrar
uma Missa na cidade de Verona. A Liturgia era por ocasião da partida de cerca
de 40 voluntários, entre médicos, engenheiros, advogados e outros profissionais
que partiam como voluntários para várias missões na África.
Antes de
deixar minha residência, na Casa Geral dos Salesianos em Roma, Pisana, vesti o Clerical suit (roupa eclesiástica,
equivocadamente chamada Clergiman) e
me dirigi à Estação Términi, de onde partem modernos e velozes trens para todos
os quadrantes da Europa. A passagem fora comprada on line antecipadamente.
Antes da primeira parada,
aparece o funcionário das Ferrovias e lhe apresento o bilhete. Imediatamente o
cidadão me diz que estou no trem errado e vai logo estipulando a multa que devo
parar na hora. Ao colocar a mão nos bolsos percebi que deixara todas as Liras
na calça quer trocara e havia deixado sobre a cama de meu apartamento. Não
gelei porque já me encontrava gelado com o frio que fazia.
Fiquei preocupado, pois como
estrangeiro era um dos visados, pois costumavam dar um jeitinho e viajarem de
graça nos transportes romanos, ou europeus. Ao entrar nos trens você deve
carimbar ou não o seu tíquete. Caso não o faça ele poderá valer para outros percursos.
No entanto, você se arriscará a ser pego pelo fiscal e receberá uma pesada
multa. Você deve autenticar sua passagem, na hora que embarcar. Cada vagão tem
suas máquinas para isso.
Tentei explicar ao homem da
Lei o que havia acontecido. Disse-lhe que era Sacerdote salesiano e que de modo
nenhum tinha querido burlar as normas italianas. Acresce ainda que eu tinha
tomado o trem errado. Aquela era uma composição mais rápida e portanto mais
cara do que a em que eu me encontrava. Eu estava portanto, duplamente
condenado.
O cidadão coçou a
cabeça por baixo de seu chapéu
oficial, ficou vermelho e mais sisudo. Pensei até que fosse me jogar pela janela. Alguns momentos de
silêncio para mim uma eternidade. Por fim o guarda sentenciou: o senhor desce
na próxima Estação e espera outro trem. Pensei com meus botões: ainda bem que
não me entregou à Policia, pois eu devia pagar uma multa bastante gorda. Desci
em uma cidadezinha desconhecida, plantada nos contrafortes dos Apeninos.
Parecia-me um planeta desconhecido, um mundo onde ninguém jamais me vira nem eu
conhecia ninguém.
Que fazer? Não podia ir nem
para frente nem para trás. O trem que eu devia tomar em Termini já havia
passado. Retornar a Roma a pé, nem
pensar. Tentar uma carona. Dificilmente conseguiria. Pensei nos missionários de
Verona que me esperavam e no Superior na Casa Geral que me havia entregue
aquela incumbência. Quase que me veio vontade de chorar em terra estrangeira.
Pensei em encontrar algum brasileiro e pedir socorro. Seria muita sorte, como encontrar uma agulha num palheiro. Vamos
à luta, pensei e comecei a caminhar subindo as ruas do povoado colinoso.
Veio-me então o pensamento
de procurar o pároco da cidade. Perguntei onde ficava a paróquia. Os primeiros
a quem abordei, pasmem, não souberam me informar nada. Galgando a colina com
minha pastinha na mão. De vez em quando a abria para ver se encontrava alguma
Lirazinha. Meu olhar perscrutava
as cumeadas, ansiando por descobrir alguma cruz que denunciasse a presença
salvadora de uma Igreja. Coragem e esperança até que não me faltavam. Sentia-me
cansado e faminto. Alguma coisa me sugeria que eu encontraria uma ajuda e
chegaria em tempo para celebrar a Missa dos jovens veronenses marcada para a
noite.
Interroguei algumas senhoras
que transitavam nas calçadas. Elas, supunha eu, eram mais religiosas que os
homens e poderiam me dizer onde ficava a Igreja, ou onde morava algum padre.
Finalmente uma delas me orientou. Ficou sentida com minha história e pensei até
que me fosse arrumar alguma Lira. Coitada, nem sempre elas andam com dinheiro.
Aquela não portava nem mesmo uma bolsa.
A Igreja estava aberta,
deserta e friorenta, vazia de fiéis. Procurei o escritório do pároco. Chegou
alguém e me apontou onde ficava. A porta fechada, quase me trouxe um calafrio,
pois pensei que não havia ninguém no interior daquele recinto. A temperatura
gélida obrigava as pessoas fecharem os ambientes. Eu tinha o coração nas mãos para que não caísse no
chão. Bati na madeira dura e gelada. Do outro lado ouvi uma voz rouca e profunda
que me mandava entrar. Empurrei a porta e divisei uma figura de barbas brancas
e longas. Um religioso envolto num burel castanho apertava nos lábios um longo
e gordo charuto, cuja nuvem de fumaça deixou-me meio tonto. Era um frade franciscano
já provecto. À primeira vista, aquele servo de Deus não me impressionou mal.
Fiquei mais animado.
Em silêncio, olhos baixos, o
frei escutou minha história. Sua fisionomia não me adiantava nada sobre a
decisão que tomaria a meu respeito. Quando lhe disse que era Vice-diretor da
Casa Geral dos Salesianos em Roma, olhou-me, puxou a gaveta e me entregou
trinta mil Liras. Senti vontade de abraçá-lo, mesmo já enjoado com o odor da
sua barba e o perfume penetrante do seu havana. Disse-lhe que retornaria para
pagá-lo. Não precisa, afirmou. Reze uma Ave Maria por mim. Trinta mil Liras eram
bastante. Deu para comprar outra passagem, uma merenda e ainda sobrou algo.
Procurei retornar e visitar aquele religioso. Não foi possível.
Cheguei em Verona, a tempo
para celebrar o ato religioso. No dia seguinte, apos visitar um pouco a cidade,
retornei a Roma.
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