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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Um missionário salesiano na Amazônia, na secunda década do séc. XX. Do livro: Epistolário de Mons. LUIGI GIORDANO Prefeito Apostólico de S. Gabriel da Cachoeira (Antenor de Andrade Silva).


     Viagem missionária do Prefeito Apostólico Mons. L. Giordano ao Alto Rio Negro e alguns de seus afluentes como o Tiquié.
     Os tucanos - de maloca em maloca - última meta da viagem - como vestem os tucanos – língua - o tipo tucano - a maloca - uma noite na maloca – trabalhando - comidas e bebidas - um pouco de doutrina - ligeira indisposição - cenas comoventes - idéias religiosas dos tucanos - uma festa para festejar a visita do Pahy – batizados - o adeus
     Há outra cópia deste relatório em Traços biográficos de Monsenhor Lourenço Maria Giordano, São Paulo, 1979, pp., 74-125. Contém algumas diferenças, inclusive quanto à data que segundo o Autor desconhecido, é de 01 de março de 1918 e não 1917. O BS traz 1917.

São Gabriel, 01 de março de 1917


No reino dos Tucanos – De maloca em maloca – Ultima meta da viagem

Os selvagens são considerados pelo Governo como proprietários dos imensos terrenos que se estendem dos confins do Brasil até á Colombia, cuja extensão, fertilidade e população se ignora, e onde não chega o civilizado senão por via fluvial e unicamente de passagem. Estamos por conseguinte á porta do reino de Tucano ou dos Tucanos, que vivem a muitos dias de distancia da foz do Tiquié. Viajamos toda a noite. Digo missa muito de manhãzinha sem perda de tempo para o vaporzinho[1], cujo andamento regular é de nove milhas geográficas[2] por hora. Por ambas margens se desdobram espessas florestas onde a mão do homem não entrou a modificar a obra caprichosa da natureza. Reina ao redor um silêncio sepulcral, interrompido apenas de vez em quando pelos gritos estridentes de bandos de papagaios, ou pelo canto melodioso de algum pássaro peregrino ou ainda pelos tiros de espingarda do Sr. Manduca[3] sobre uma anta que lhe escapa, ou sobre um carcará ou um pássaro mergulhão.
Aqui acode-se á memória a história de cadáveres mutilados e deitados ao rio; a sorte tristemente celebre de um tenente e do seu companheiro apanhados desapercebidos perto d’ali e trucidados. Cenas selvagens! É um pais misterioso! Depois de viajar todo o dia, tarde alta chegamos a Manha-uitera. D’uma pequena cabana saem três índios quase de costumes adamíticos, aos que saudamos em Nheengatú, e que eles entendem e falam discretamente: o Sr. Manduca escolhe um d’elles afim de que nos sirva de prático do rio; e continuamos a viagem. A’s 8 da manhã do 6, festa da Epifania, chegamos a Tucano-Cachoeira, onde está o tuxaua (chefe) Miguel. Saltamos em terra, e vejo por vez primeira uma maloca, ou casa, dos índios, que chama muito a minha atenção pelo seu tamanho; está somente um índio de sentinela, Joaquim; os demais estão a caçar, a pescar ou trabalhar. Celebro missa na maloca, e, dirigindo ao Evangelho a palavra aos companheiros de viagem, recordo-lhes, pelo dia que é o dever de imitar aos Reis Magos, fazendo conhecer e amar ao Divino Salvador.
Embarcados de novo logo ás 10, chegamos a Tapira-Cachoeira a isso do meio dia, ás 14 a Urayti, e depois das 17 a Uira-poço á maloca do tuxaua Francisco. Fui recebido com temor reverencial. Distribui imediatamente medalhas, que todos aceitaram com respeito. Alguns passavam as mãos pela batina beijando-as depois; varias mães apresentavam-me os meninos: eu abençoava-os colocando-lhes a mão sobre a cabeça que elas depois estreitavam ao peito. Os rapazes vinham a principio com receio; mas perdiam-no, chegando-se com confiança assim que viam que eu os olhava com ares de predilecção. Estas scenas impressionantes repetiam-se em todas as partes. Ao dia seguinte, 7 de Janeiro, disse missa na maloca rodeado dos índios. Prosseguindo a derrota[4] encontramos o tuxaua Joanico d’Esteio (São José) que vinha rio abaixo em canoa com muitos índios; e como eu oferecesse uma medalha aos que estavam mais á beira, todos se abalançaram para recebê-la também, faltando pouco para que a embarcação se virasse e afundasse. Passado Esteio fizemo-nos encontradiços com o tuxaua José Pacuemo de Pary-Cachoeira, que também vinha rio abaixo com outros índios em canôas carregadas de farinha de mandioca. A’s 11 chegávamos a Floresta (São João) donde é tuxaua Manuel Caetano, que é talvez o índio que há chegado a entender melhor que qualquer outro a importância da nossa missão. Em todas as malocas que visitávamos o Sr. Manduca ordenava aos índios que não saíssem, e àqueles que encontrávamos a caminho que parassem ou voltassem ás suas malocas para receber a visita do Pahy (Missionario). Obedeceram todos. Finalmente, depois de Maracajá-ponta, a maloca dos Dessana donde é tuxaua Antônio Caetano, chegamos a Pary-Cachoeira, isto é, á meta forçada da nossa viagem; pois o rio não é mais navegável por falta de profundidade. O Tiquié, tão grande na desembocadura (um quilômetro de largura), se vai estreitando pouco a pouco até 50 ms. que é o ponto até onde chegamos. Apenas em terra, eis o tuxaua José. Saudando-me em Nheengatú, se disse feliz por encontrar-me entre a sua gente, e apresentou-me a sua primeira mulher e o filho Joaquim de 18 anos, que lhe herdará o titulo de tuxaua. Com ele também estava o pajé.



[1] Tinha a potência de sete cavalos.
[2] Comprimento de um minuto do equador terrestre, equivalente a 1.865 metros (Dicionário Aurélio).
[3] Cooperador rionegrino. Chefe da expedição missionária que constava de 14 pessoas.
[4] Rota percorrida por uma embarcação no mar ou rio.

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