SEX, 28 DE
SETEMBRO DE 2012 13:44 PADRES DEHONIANOS
A liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum
apresenta várias sugestões para que os crentes possam purificar a sua opção e
integrar, de forma plena e total, a comunidade do Reino.
Uma das sugestões mais importantes (que
a primeira leitura apresenta e que o Evangelho recupera) é a de que os crentes
não pretendam ter o exclusivo do bem e da verdade, mas sejam capazes de
reconhecer e aceitar a presença e a ação do Espírito de Deus através de tantas
pessoas boas que não pertencem à instituição Igreja, mas que são sinais vivos
do amor de Deus no meio do mundo.
No Evangelho temos uma instrução,
através da qual Jesus procura ajudar os discípulos a situarem-se na órbita do
Reino. Nesse sentido, convida-os a constituírem uma comunidade que, sem
arrogância, sem ciúmes, sem presunção de posse exclusiva do bem e da verdade,
procura acolher, apoiar e estimular todos aqueles que atuam em favor da
libertação dos irmãos; convida-os também a não excluírem da dinâmica
comunitária os pequenos e os pobres; convida-os ainda a arrancarem da própria
vida todos os sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino.
A segunda leitura convida os crentes a
não colocarem a sua confiança e a sua esperança nos bens materiais, pois eles
são valores perecíveis e que não asseguram a vida plena para o homem. Mais: as
injustiças cometidas por quem faz da acumulação dos bens materiais a finalidade
da sua existência afastá-lo-ão da comunidade dos eleitos de Deus.
LEITURA I – Nm 11,25-29
Leitura do Livro dos Números
Naqueles dias, o Senhor desceu na nuvem
e falou com Moisés. Tirou uma parte do Espírito que estava nele e fez pousar
sobre setenta anciãos do povo. Logo que o Espírito pesou sobre eles, começaram
a profetizar; mas não continuaram a fazê-lo. Tinham ficado no acampamento dois
homens: um deles chamava-se Eldad e o outro Medad. O Espírito posou também
sobre eles, pois contavam-se entre os inscritos, embora não tivessem
comparecido na tenda; e começaram a profetizar no acampamento. Um jovem correu
a dizê-lo a Moisés: «Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento». Então
Josué, filho de Nun, que estava ao serviço de Moisés desde a juventude, tomou a
palavra e disse: «Moisés, meu senhor, proíbe-os». Moisés, porém, respondeu-lhe:
«Estás com ciúmes por causa de mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse
profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»
AMBIENTE
O Livro dos Números (assim chamado na
versão grega, pelo fato de o livro começar com uma lista de recenseamento onde
são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus) apresenta um
conjunto de tradições – sem grande preocupação de coerência e de lógica – sobre
a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egito. São tradições de origem
diversa, que os teólogos das escolas javista, eloísta e sacerdotal utilizaram
com fins catequéticos.
No seu estado atual, o livro está
dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de
Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a
caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cf. Nm
10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada
na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf.
11,1-36,13).
Mais do que uma crônica de viagem do
Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos
Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é
ser um Povo reunido à volta de Javé e da Aliança. Com algum idealismo, os
autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por ação de Javé, esse grupo
informe de nômades libertado do Egito foi ganhando progressivamente uma
consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de
Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também
uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de
escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra
como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai
progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os
horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto
e mais santo.
O episódio que hoje nos é proposto
acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm
11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra
Javé. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir
aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Javé
propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito
de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm
11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.
MENSAGEM
Os “anciãos” (em hebraico: “tzequenîm”)
são uma instituição no universo político e social de Israel. São os “cabeças de
família” que formavam, em cada cidade, uma espécie de “conselho” e que
presidiam à comunidade. O nosso texto faz remontar a Moisés e ao deserto a
instituição dos anciãos. Na perspectiva do catequista bíblico, eles recebem o
Espírito de Deus para colaborar na governação do Povo de Deus.
A forma como o nosso autor descreve o
dom do Espírito é a seguinte: Deus tirou “uma parte” do Espírito que estava em
Moisés e derramou-o sobre os setenta anciãos. Na perspectiva do autor, a
explicação é esta: Moisés possuía a plenitude do Espírito enquanto dirigiu
sozinho o Povo de Deus; porém, quando a responsabilidade da governação foi
dividida com os setenta anciãos, também o Espírito que repousava em Moisés foi
repartido por todos. A descrição, ainda que bizarra, dá a ideia, por um lado, da
unidade do Espírito e, por outro, da partilha do mesmo Espírito por todos
aqueles que Deus chama a uma missão.
A presença do Espírito de Deus nos
anciãos manifesta-se na capacidade de profetizar. O “profetismo” de que aqui se
fala não tem nada a ver com o “profetismo” dos grandes profetas pregadores e
escritores que Israel conhecerá mais tarde; mas designa um estado de entusiasmo
ou frenesim, de êxtase e delírio coletivo, destinados a criar um clima de
fervor e de exaltação religiosa. Nesta altura, manifestações deste tipo são
vistas como sinais da presença do Espírito de Deus.
A história tem, contudo, um epílogo
inesperado: Eldad e Medad, dois anciãos que estariam na lista dos setenta
escolhidos, mas que não estavam presentes no momento da recepção do Espírito,
começaram também a profetizar. Josué crê que se trata de um abuso intolerável,
que põe em causa as competências da hierarquia estabelecida e propõe a Moisés
que lhe ponha cobro… A resposta de Moisés é a resposta de um homem livre,
magnânimo, de espírito aberto, que não está preocupado com o controle dos
mecanismos de poder, mas com a vida e a felicidade do seu Povo: “Estás com
ciúmes por causa de mim? Quem me dera que todo o Povo fosse profeta e que o
Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles” (vers. 29).
A resposta de Moisés será um anúncio
profético do dia do Pentecostes, quando o Espírito de Deus se derramou sobre a
totalidade do Povo da Nova Aliança (cf. At 2,16-21).
ATUALIZAÇÃO
• A comunidade do Povo de Deus é a
comunidade do Espírito. O Espírito não é privilégio dos membros da hierarquia;
mas está bem vivo e bem presente em todos aqueles que abrem o coração aos dons
de Deus e que aceitam comprometer-se com Jesus e com o seu projeto de vida.
Mesmo o irmão mais humilde, mais pobre, menos considerado da nossa comunidade
possui o Espírito de Deus.
• O episódio ensina também que o
Espírito de Deus é livre e atua onde quer e como quer. Não está limitado por
fronteiras, nem por regras, nem por interesses pessoais, nem por privilégios de
grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do Espírito, nenhuma instituição pode
controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos testemunhas da ação do Espírito
no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa instituição religiosa…
Não temos que sentir-nos melindrados ou ciumentos se Deus age no mundo através
de pessoas que não pertencem à nossa Igreja; temos é de reconhecer a presença
de Deus nos gestos de amor, de paz, de justiça, de solidariedade, de partilha
que todos os dias testemunhamos (mesmo naqueles que se dizem ateus) e agradecer
ao nosso Deus a sua presença, a sua ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
• A certeza de que ninguém tem o
exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado qualquer atitude de fanatismo,
de intransigência ou de intolerância face às perspectivas diferentes com que
somos confrontados. Os preconceitos, os esquemas egoístas, as condenações à
priori, os julgamentos apressados, podem fazer-nos perder os desafios que o
Espírito, pela voz dos irmãos, nos apresenta.
• Moisés, o
líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da escravidão
para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a sua
incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve ciúmes,
nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade em
aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo, ele
ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos, a
partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do
Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de fazer
as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos que a
intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos qualquer
ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque não
estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projetos pessoais…
Já pensamos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades, estamos a
impedir os outros de crescer? Já pensamos que, quando somos nós a conduzir todo
o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspectivas diferentes, podemos
estar a calar os desafios do Espírito?
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