Os Salesianos chegam ao Rio
Negro
«As águas do dilúvio primevo ainda não escorreram de
todo por lá»
Maior afluente da margem
esquerda do Solimões, que o recebe na cidade de Manaus, o Rio Negro (5.571km),
emprestou seu nome àquela circunscrição eclesiástica do Norte amazônico[1].
Criada cerca de três
séculos, antes de ser ocupada pelos Salesianos, passou por constantes
dificuldades, devido sobretudo às intermináveis distâncias. Mercedários,
Carmelitas e Capuchinhos por ali passaram e não encontrando condições
necessárias à propagação da fé, foram obrigados a abandoná-la, uns após outros.
Nem mesmo a união, em 1896, com a Diocese de Manaus, foi possível solucionar os
problemas.
Os primeiros três salesianos que ali aportaram foram
capitaneados pelo missionário P. João Bálzola[2]
(em 29/04/1915 chegam em Manaus). Sua entrada em S. Gabriel da Cachoeira, sede
da Prelazia deu-se em 21 de maio de 1915[3].
Ao se instalar em S. Gabriel da Cachoeira[4],
P. J. Bálzola[5] iniciou de
imediato (25 de maio de 1915) uma visita às aldeias e aos poucos civilizados da
região. No dia 30 alcança o forte[6]
de Cucuhy (cerca de 80km de S. Gabriel), limite no extremo Norte com a Colômbia
e a Venezuela. O missionário foi muito bem acolhido pelo Comandante do
destacamento local, Sargento Tobias de Souza Reboredo (assumira interinamente o
Comando no lugar do Tenente Aprígio), esposa e soldados. A mesma acolhida tinha
acontecido em S. Gabriel por parte do Cel. Joaquim de Aguiar e demais
autoridades locais.
Na manhã seguinte, a sala de armas do forte foi
desocupada e virou Capela. Foi então, celebrada a primeira Missa daqueles
cafundós verdes, assistida pelos militares, famílias vizinhas e indígenas das
três fronteiras. No pequeno altar uma imagem de Nossa Senhora Auxiliadora, a
quem no último dia 24 passado tinha sido consagrada a Prefeitura Apostólica. P.
Bálzola retorna a S. Gabriel em 16 de junho de 1915.
Seu trabalho missionário
e etnológico foi admirado por governos e cientistas. É sem dúvida um dos
missionários que por primeiro lançou as bases da civilização entre os bororo no
Mato Grosso e no Setentrião amazônico entre os Tucanos.
P. L.
Giordano em São Gabriel da Cachoeira
Na Amazônia rionegrina P. Giordano deveria passar a
terceira e última fase de sua vida apostólica. Um período de mais de três anos.
Deixando a sua cara Thebaida, onde havia sido diretor de 1911 a 1915,
transfere-se para a região do Alto Rio Negro. Seria companheiro de lides
apostólicas do veterano missionário P. João Bálzola. Sua eleição para Prefeito
Apostólico aconteceu em 1o de agosto de 1916. A sede seria S.
Gabriel da Cachoeira.
Monsenhor Giordano enfrentou sérios obstáculos. A
vida ali era muito difícil, faltava tudo. Além das enormes distâncias e as
viagens perigosas através dos rios e selvas, havia o problema das enfermidades
tropicais, como a malária. Não obstante o novo Prelado empreendeu diversas e
longas visitas para conhecer diretamente e fazer amizade com os índios e
civilizados da Prefeitura. Sua maneira paterna, paciente e cativante
conquistava as populações que visitava. Adaptava-se, o quanto possível aos
costumes e alimentação daqueles homens e mulheres da floresta, conquistando-os
com sua bondade.
Escreveu páginas interessantes sobre suas excursões
na Prefeitura Apostólica. Leiam-se por exemplo os relatórios 98 e 99 deste
volume e o Anexo III.
No dia 14 de dezembro de 1919, Mons. L. Giordano
encontrava-se em meio à floresta amazônica, visitando seus índios do Padauery.
Este rio tributário da margem esquerda do Negro era então um dos mais habitados
da região norte amazônica, bem como um dos mais insalubres, em termos de
doenças tropicais.
O Prefeito apostólico, embora de robustez física
invejável, não obstante, já vivia combalido pelas enfermidades dos trópicos.
Assim é que durante aquela visita apostólica, foi acometido em certo momento
por uma fraqueza geral, acompanhada de febre. Sentindo que a situação era delicada,
Monsenhor resolve retornar a São Gabriel.
Transportaram-no para uma das praias do Rio Negro,
acomodando-o em um barracão do “Porto Javary”. Aguardará o barco que
mensalmente percorria aquele percurso, passando por S. Gabriel. No entanto,
restavam poucas horas ao heróico e dedicado missionário. Que espécie de mal
fulminava o intrépido caçador de almas? Mistério! Talvez seus amigos pajés
quisessem que seu espírito e seu corpo permanecessem sempre com eles, em meio
às brumas e o lusco-fusco da floresta tropical. Seria o gênio sagrado (o
Jurupary do bem) que lhes guardaria eternamente as malocas.
Um dia apenas, antes de retornar à sede da missão,
Monsenhor foi tomado por uma brusca e rápida agonia. O coração do pahy
não resistiu, deixou de funcionar, truncando a existência do ainda
relativamente jovem guerreiro. Estava com 63 anos de idade, 43 de profissão na
Congregação salesiana e 40 de sacerdócio[7].
Assim o incansável pastor desaparecia nas selvas
amazônicas, o Inferno Verde. Longe dos seus familiares, dos irmãos de
Congregação, dos amigos. Num barracão de madeira, enquanto se encontrava em
pleno trabalho missionário. Uma morte solitária na solidão infinita da selva
tropical, tantas vezes banhada com os suores e lágrimas do querido pahy[8].
Durante o ano de 1920, P. Bálzola, após a morte de
Mons. L. Giordano, foi Prefeito Apostólico interino do Rio Negro. Em 1921 Mons.
Pedro Massa assumiu a Prefeitura.
[1] Além de suas águas negras,
outra característica é a união que faz entre da bacia amazônica com a do
Orenoco, através do canal natural formado pelo Rio Casiquiari (ou Cassiquiara).
Um fato de importância político-econômico-militar, ainda não explorado.
[2] P.
João Bálzola partira da Colônia indígena de S. José do Sangradouro, em
Mato Grosso, aos 26 de novembro de 1914. Cuiabá era sua primeira parada em
busca do Setentrião amazônico. Em seguida Corumbá e Porto Esperança, onde a
estrada de ferro, inaugurada há poucos dias, o levou ao Rio de Janeiro, após
seis dias de aventuras, inclusive dormindo ao lado dos trilhos e do trem em
pane. Em S. Paulo (Lorena) encontra-se com P. Rota e em Aracaju com P. L.
Giordano, que desconhecia ser o próximo Prefeito Apostólico do Rio Negro. Em
Pernambuco juntaram-se dois outros companheiros, P. José Solari e o Coadjutor
José Canuto. O salesiano J. Batista Zanella cedido pelo P. Rota em Lorena, por
motivos de saúde não pode continuar, permanecendo em Recife.
[3] Na época a população era
formada por alguns portugueses e brasileiros que se dedicavam ao comércio e à
extração da borracha. Os demais eram índios civilizados ou semi-civilizados. «A
população do Rio Negro é uma população sui generis, havendo nella todas
as gradações, dos typos mais selvagens ao typo europeu» (BS 3 (1916) 76.
[4] Os
índios chamam Cachoeira de S. Gabriel, Cachoeira de S. Isabel,
mudando a posição dos substantivos.
[5] P.
João Bálzola (nasceu em Vila Miroglio, Alessandria – Itália, em 01 de fevereiro
de 1860; e faleceu em Barcelos – Brasil, 17 de agosto de 1927). Em 1893 seguiu
para o Brasil, como secretario de P. L. Lasagna. Encarregado em maio de 1895 da
Colônia Teresa Cristina, povoada pelos Xavantes. Em 1902 passa a trabalhar com
os bororo. Permaneceu em Mato Grosso até 1914, data de sua transferência para o
Rio Negro. Trabalhou durante doze anos na Região do Rio Negro, fundando S.
Gabriel em 1916, Taracuá em 1923 e Barcelos em 1924.
[6] Nos
pontos estratégicos eram construídos fortes. Os espanhóis eram na área os
principais contendores. Tive oportunidade em agosto de 2000, de visitar os
restos (melhor os alicerces) do forte de S. Gabriel da Cachoeira, numa colina à
margem esquerda do Rio Negro, que ali mostra-se orgulhoso e encachoeirado em
busca do Amazonas. A fortaleza não deveria ser tão espaçosa, mas aparentava ter
sido uma construção bastante resistente. Ali, à margem direita do Negro
divisa-se uma clareira com algumas poucas e humildes construções. Depois a
amplidão da mata. Nos longes do horizonte, seguindo o declive do rio, divisa-se
a Serra dos Papagaios (Curí Curiaí), onde repousa a “Virgem Adormecida” dos
tucanos. Sua cabeça dirige-se para o Norte, na direção das Serras de Imeri,
Taperipecó e Serra do Padre na fronteira com a Venezuela. Naqueles rincões
desolados encontram-se o Monte da Neblina, o pico mais alto do Brasil com
3.014m e o Monte 31 de março com 2.992m. São como que as grandes atalaias do
Setentrião amazônico.
[7] Sobre
sua agonia e morte leia-se o comovente relato no Anexo III, deste trabalho.
[8] «Muitos missionários não
lograram o supremo consolo de repousar na terra banhada com os seus suores, e
afagada pelo carinho dos seus neófitos; alguns terão talvez os restos mortais
dispersos e profanados num desvão da floresta: outros enfim, mais felizes,
dormem placidamente ao lado da capela da missão, no campo santo nostálgico do
deserto. Visitei um desses túmulos solitários. Foi ao sopé de um morro
selvagem, onde a natureza ostentava ainda a bruta flor da sua beleza virginal e
primitiva. Um só cruzeiro tosco de vinhático velava sobre a campa, em seus
braços, as passifloras [trepadeira nativa das regiões tropicais da América] e
orquídeas bravas desabrochavam nas pétalas bizarras a cor dolente e a liturgia
da tristeza. Mas no alto, farfalhando em céu de terno azul, os buritis
alvissareiros salmodiavam aos ventos do planalto as preces de uma saudade cheia
de esperanças. À flor do sepulcro, onde vicejavam ainda as últimas corolas, que
a piedade das crianças indígenas nele depositara, uma lacônica inscrição
lembrava apenas o nome do mártir. Ali jazia um velho missionário. Nascera no
além-mar, mas tudo desamara sobre a terra, para consagrar-se inteiramente à
salvação das almas silvícolas. Ali vivera feliz na humildade de seu trabalho; e
ali tombara com o sorriso ainda nos lábios, os olhos voltados para as estrelas,
não as estrelas verdes e fantásticas do caçador de esmeraldas, mas as estrelas
claras do seu ideal de apóstolo, gravado em pleno céu, na sagrada constelação
do Cruzeiro» (Centro de..., Episódios da Vida Missionária, 53. Autor
desconhecido).
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